Le Entrevista a João Ferreira (Queer Lisboa) por Rafa.el


João Ferreira, director do Festival Queer Lisboa | Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa fala sobre a 15ª edição do Festival mais antigo de Lisboa que percorre a cidade de 16 a 24 de Setembro, pelo pólo habitual do Cinema São Jorge e prolongando-se este ano até ao Teatro do Bairro. Este ano sob o signo da transgressão e novamente esbatendo e expandindo os limites do que é um Festival subordinado ao cinema, em torno do Queer Lisboa 15, orbitam numerosos outros eventos que complementam o que se vai passar na tela.

O Festival mais antigo de Lisboa, 15 anos, sob o signo da trangressão. Apresenta-me o festival.

Vou começar pelo tema da transgressão, porque me pareceu um tema não só interessante como importante para a edição deste ano. Eu estou no Festival vai fazer 10 anos, o Festival faz 15. Acompanho o cinema Queer já há muitos anos. Evoluiu bastante nos últimos tempos, nesta última década principalmente, entrou para o circuito comercial e surgiram muitos sub-géneros dentro do cinema Queer. E a transgressão surge sobre uma reflexão quanto ao cinema Queer. A partir do momento em que ele toca tantos formatos e sub-géneros, qual é esse cunho que ele tem. A transgressão é o elemento que procuramos quando fazemos a selecção destes filmes. Continua a ser uma das características fundamentais do que distingue o cinema Queer.


Em termos de balanço do Festival, como perguntavas, foi uma trajectória complexa. Durante anos foi o único festival de Lisboa, o único a acontecer com regularidade durante 7 anos, até surgir o Indie e o Doc ter vindo para Lisboa. Nessa altura o Festival era diferente, nós conseguíamos abarcar tudo o que era cinema independente. A temática era queer, mas conseguíamos abarcar um leque maior de escolhas.

Com o aparecimento de outros festivais, que coincidiu com um período de dificuldades económicas para o Festival - posso dizer que entre a 7ª e a 8ª edição o Festival chegou mesmo a estar em risco. Foi preciso reorganizar, reorganizar a programação, reorganizar o propósito do Festival. Fomos para o Quarteto, pois na altura perdemos o apoio da Câmara de Lisboa e o Quarteto acabou por ser um lugar de experiência. Tinha quatro salas e tínhamos grande liberdade lá dentro, liberdade para brincar um bocado com a programação. E para mim, foi muito importante da formação como programador, apesar da falta de dinheiro, foi necessária muita imaginação para conseguir encher aquelas quatro salas. E foi um impulso muito importante para o Festival. E depois foi retomado o apoio da Câmara e da EGEAC, fomos para o São Jorge em plena 11ª edição e chegámos ao modelo que temos hoje. Começaram as competições e, neste momento, acho que o passado do Festival - e orgulho-me bastante disso - este passado atribulado deu-nos uma grande segurança. Passados 15 anos e continuar aqui, é porque faz sentido existirmos.

Encontraram a estabilidade. Falaste dos apoios, sendo um Festival bastante específico e como interessado em cinema que sou, vejo sempre muitos poucos apoios ao Queer. Há apoios institucionais, mas não há privados.

Temos a sorte de ter conseguido durante estes 15 anos, com pequenas interrupções, sempre o apoio do Ministério da Cultura. Ex. E da Câmara Municipal de Lisboa. O grande problema têm sido os apoios privados, por exemplo, é muito difícil conseguir o apoio de instituições bancárias. Tentamos todos os anos e não se consegue. Empresas de telecomunicações. É um mercado muito difícil para nós e aí acho que existe o factor preconceito. Em termos de apoios privados, apoios logísticos, temos conseguido cada vez mais. É um esforço de produção brutal todos os anos, mas que somado já é uma fatia importante do orçamento. Seja companhia aéreas, seja hotéis; estes apoios, que muitas vezes não são um financiamento directo, mas são em forma de descontos, de apoio logístico, ajudam-nos muito em termos de orçamento. Conseguimos trazer mais convidados.

O Queer, representa para mim, além de ser um excelente showcase, um mostruário de cinema, tem também o seu papel didáctico, o seu papel educativo. É importante.

O Festival não é político, não é activista, mas estamos conscientes desde o início da importância social que tem. Acredito que o Festival altere mentalidades, ajuda a integração. Estes filmes são importantes para muita gente que, ou que está na adolescência ou a descobrir a sexualidade. Tem esse papel pedagógico e isso é uma coisa que temos em conta na programação. Há filmes que são fundamentais nesse sentido e que queremos mostrar por esse lado também. Nós nunca descartamos essa vertente que é importante.

Fala-me um pouco mais da transgressão.

A dúvida que surge -  e têm-se posto esta questão - num momento em que parece que já se conquistou tanta coisa, conquistaram-se leis, conquistou-se o casamento...

É porque te posicionaste como não activista. Mas acaba por ser um activismo, se não absolutamente activo, passe o pleonasmo. 

A transgressão é um acto, há sempre o lado activista, tem o lado provocatório. E existe sempre transgressão. Continuamos a pensar em termos binários, se existe o casamento gay, ele é sempre falado e sempre pensado em oposição a. Ou seja, a matriz é sempre o casamento heterossexual. Ou seja, apesar das conquistas em termos de igualdade, é sempre um acto de transgressão. Casar, mesmo que protegido pela lei, continua a ser um acto de transgressão. Por isso é que achámos que este título é importante. Porque transgredir faz parte, faz parte da cultura Queer, deste tipo de cinema especificamente, mas faz parte também das vidas deste indivíduos Queer - chamemos-lhe assim, para abranger todo o espectro. Isto não é necessariamente dramático.

Vejo como absolutamente necessário.

Está inerente. E não é só cá. E mesmo em países em que existe há mais tempo, essa igualdade institucionalizada, e mesmo na sociedade essa integração é maior, continua a ser assim. E acho positivo assumir esse lado. Há uma cultura que vem de trás, há uma história, e a transgressão faz parte dessa história. Porque não aceitá-la e assumir como é.

A selecção acaba por reflectir esta transgressão.

A programação sim, concerteza. Noutras edições, inconscientemente e nesta edição, muito conscientemente. Nesta edição tem o título. E é assumido, esse lado provocatório e que temos, e que acho importante.

Já vão 15 anos, há um lugar que já foi conquistado.

Podemos dar-nos ao luxo dalguma provocação. (risos)

Falavas há pouco de sub-géneros dentro do cinema Queer. A que te referias?

Sub-géneros e sub-temáticas. Quando falo de sub-géneros, por exemplo, o cinema experimental tem cada vez mais expressão no cinema Queer. Está a ser muito explorado. Linguagens não-narrativas. Vão-se buscar estéticas já históricas do cinema, do experimentalismo dos anos 60/70. Está-se a recuperar muita coisa da história do cinema, cada vez mais nas produções que se fazem hoje. O cinema Queer tem uma história já grande e cita-se já a si mesmo. Este ano temos uma secção dedicada à intersexualidade e curiosamente, no ano passado, num festival, ganhou um filme que falava desse tema, o El Último Verano de la Boyita. Há filmes que começam a trazer ao de cima estes temas, que durante anos foram marginais dentro do próprio cinema Queer, quanto mais no cinema comercial. O tema da transexualidade, por exemplo. Há muitos anos que se explora o transgénero de homem para mulher, o contrário não é muito explorado. Este ano procurámos alguns filmes que estão a falar da transformação de mulher para homem, caso do Becoming Chas.

Quanto a destaques desta edição, um ou outro filme, uma personalidade presente.

O filme de abertura, o Howl do Rob Epstein e do Friedman que vamos apresentar em anteestreia. Ele vai estrear na semana seguinte, pela Midas. Foi um dos últimos títulos que programámos e acabou por ser a cereja em cima do bolo em termos de transgressão. Pessoalmente, porque é um dos meus escritores favoritos, o Allen Ginsberg e é, de facto, um símbolo da transgressão a todo o movimento beatnick. Vamos ter um documentário sobre Ginsberg, portanto, fica tudo enquadrado. Esse é para mim, um dos grandes destaques.

E o filme da noite de encerramento, o Taxi zum Klo. É a primeira vez que vamos fechar o Festival com um filme tão antigo, e vamos mostrá-lo precisamente para celebrar os 15 anos do Festival. É o filme que é a essência do cinema Queer. Tem um lado arrojado em termos de cinema, de experimentar com a linguagem de cinema. É um filme autobiográfico, o realizador, professor do ensino primário, engata nos bares e nas casas de banho de Berlim. Tem algum conteúdo explícito, tem esse lado provocatório. E depois tem um lado muito poético também, ou seja, reúne aquilo que para mim são os factores essenciais do cinema Queer. Foi feita uma nova versão do filme, que está a ser lançada no circuito dos festivais. Os filmes, quer de abertura, quer de encerramento, calharam muito bem em termos da programação deste ano.

Mais destaques; da competição de longas, o In The Woods, que é um filme grego, praticamente sem diálogos e que resultou também da experiência muito pessoal do realizador com três actores. Foram praticamente sozinhos para um floresta gravar com uma câmara digital. E que resultou numa das experiências mais surpreendentes que vamos ter este ano. Tínhamos tentado consegui-lo no ano passado, mas estava fechado ao circuito dos festivais e, este ano, vamos ter finalmente este filme, que passou em Roterdão no ano passado.

Uma curiosidade, se calhar numa vertente mais activista e muito gay, um documentário sobre a filha - que agora é filho - da Cher e do Bono, Chastity Bono, agora Chaz Bono, que estava em processo de transição de mudança de sexo de mulher para homem e que é um documentário em que ele deixa entrar na vida familiar e, que tem a particularidade, de entrar a própria Cher. Que é uma raridade, porque ela raras vezes falou sobre isto. Mesmo apesar de ser um ícone gay, ela rejeitou a homossexualidade da filha, quando ela se assumiu aos 18 anos. É interessante ver como se criam os ícones gay e, no caso da Cher, a imagem pública que passam não é exactamente aquilo que praticam em casa. E o documentário mostra isso muito bem.

Depois há um documentário no Queer Art sobre o realizador que já acompanhamos e mostrámos já a filmografia toda, Bruce LaBruce. Chama-se The Advocate for Fagdom, da realizadora francesa Angélique Bosio e que estreou este ano em Berlim. Passa a vida e a carreira do Bruce LaBruce, que é um dos nomes essenciais do lado mais marginal do cinema Queer. Do Bruce LaBruce mesmo, vamos ter um teledisco a passar antes do documentário, que ele realizaou para o Gio Black Peter, um cantor de Nova Iorque. Vem muito na linha que o realizador tem explorado ultimamente, os zombies, uma estética mais gore e porno, também.

Dava um último destaque, os filmes Wakefield Poole na secção das Hard Nights. Vamos passar dois filmes do início dos anos 70, um deles ficou muito conhecido, o Boys in the Sand, que é uma sátira ao The Boys in the Band, à peça e ao filme. São os primórdios da pornografia gay e é engraçado ver o que era, nos anos 70, cinema à séria, e aquilo em que se transformou hoje. E as Hard Nights vão procurar, não obviamente aquilo que é hoje conhecido como pornografia, que é um lado mais comercial, mas vamos buscar realizadores independentes que usam sexo explícito. Vamos ter também alguns exemplos mais recentes, vamos ter cá um realizador americano, o Todd Verow, que usa o sexo explícito no cinema, sem ser propriamente com a linguagem da pornografia.

E destaques de actividades paralelas?

Vamos ter, pela primeira vez, uma peça de teatro. Para assinalar com uma coisa diferente, os 15 anos. Vamos ter um grupo espanhol, os Sudhum, de Madrid, com Silenciados que falta de homofobia. E, aqui está, novamente, o papel pedagógico. É uma peça que tem uma mensagem forte, é pedagógica no bom sentido, ou seja, não é uma peça que queira ensinar, mas que ensina sem querer fazê-lo. São cinco actores e vamos apresentá-lo no primeiro fim-de-semana, sábado e domingo.

Vamos ter também uma instalação, Mansfield de 1962. Apresentámos, há dois anos, um filme do William Jones que foi baseado numas filmagens feitas em 1962, Mansfield, Ohio, em que a polícia captou imagens de homens a engatarem numa casa de banho pública. Ele depois ele usou isso para fazer um filme e para fazer esta instalação. Vamos apresentar esta instalação na casa de banho do São Jorge. E também uma exposição com os 15 anos do Festival.

Como júri, vamos ter a Beatriz Batarda e o Albano Jerónimo, na competição das longas metragens. E também o Sam Ashby, editor duma revista muito bonita e que traz o espírito da fanzine, mas com muita qualidade gráfica, a Little Joe. Nos documentários, vamos ter o Miguel Gonçalves Mendes, o realizador doJosé e Pilar e também a programadora e directora do Festival Gay e Lésbico de Milão, Claudia Mauti e Franck Finance-Madureira, que é quem organiza há dois anos o Prémio Queer do Festival de Cannes.

Olhando para o programa, vê-se que o Festival se expande para outras áreas que não o cinema.

A música já existe há algum tempo. Agora, obviamente, somos um festival de cinema, esse é o nosso interesse e objectivo. Sempre que pudermos mostrar outras disciplinas artísticas ligadas à cultura queer, que de alguma forma complementem a programação do Festival, fazemos. E, este ano, conseguimos uma programação variada nesse sentido. O interesse é alargar o público, se pudermos atrair o pessoal do teatro para ver uma peça, se calhar interessa-lhes também ver algum filme ou exposição, também.

E as festas, obviamente, cujo objectivo é chamar mais gente. E que se divirtam. Na sexta, uma festa do Teatro do Bairro. Um cocktail no Le Marais, dia 20, a partir das 23h, Cocktail Queer Palm. A Little Joe vai ter festa de lançamento da revista na quinta dia 22, no Woof X. Dia 23, Dusk at the Mansion + Nuno Galopim no Teatro do Bairro e festa de encerramento a 24 no Cinema São Jorge.

Sobre a participação portuguesa.

Este ano não nos chegaram muitas participações portuguesas. Temos algumas curtas-metragens. Na competição temos duas curta, de finalistas de escolas de cinema. A produção portuguesa continua a ser reduzida, mas não é um problema especificamente do cinema Queer. A produção é pouca em qualquer género, produz-se pouco cinema em Portugal. O que tem acontecido nos últimos anos, de facto, há muitas escolas de cinema e há cada vez mais jovens realizadores a explorar esta temática. E nós temos acompanhado muito esses filmes e, por isso, temos tido a garantia nestes últimos anos, ter tido, pelo menos nas curtas-metragens, alguma representatividade do cinema português.

O Festival acaba por ser, e sendo único em Portugal, uma plataforma de lançamento.

Alguns filmes que passaram aqui no passado, estou a lembrar-me dum filme da Patrícia Bateira, do David Bonneville, que passaram aqui pelo Festival e que fizeram uma trajectória muito boa nos festivais. Acaba por ser também uma plataforma para esses filmes e o Festival está bem posicionado a vários níveis, ganhámos já um prestígio grande junto dos outros festivais internacionais. E estamos também na rentrée, estamos em Setembro, em que começam as novas programações culturais.

E tens muita gente de fora, não digo só pelos filmes - interessados.

Nós temos sempre - eu diria, que metade - vêm por eles. Produtores, realizadores, aproveitam e vêm promover o filme. Fazem contactos com distribuidoras.

Mas fora do meio.

Fora do meio, espectadores só. De Espanha, essencialmente.

Eu gostava que convidasses as pessoas a vir ao Festival.

Para todos aqueles que nos acompanham desde o início, é uma oportunidade para vir celebrar pelos 15 anos. E pela programação muito especial, para quem nunca cá veio, é uma oportunidade de virem ao Festival. 84 filmes, uma peça de teatro, festas, há muitas razões.

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