Le Entrevista a Júlio Resende por Pedro Tavares

No seguimento do seu último álbum, o You Taste Like a Song, e na expectativa do concerto incluído na Festa do Avante de 2011 (leiam o artigo nesta edição da Le Cool Lisboa 303), Pedro Tavares entrevista Júlio Resende, músico de jazz, pianista, tudo.

Vais actuar na Festa do Avante no dia 4 de Setembro com o teu quarteto com Perico Sambeat, com o Joel e com quem mais?

Com o Matt Penman.

Fala-me um pouco do que se vai passar lá.

Vai ser a extensão deste último disco "You Taste Like a Song" em trio, vai passar a quarteto. E daí trazer novas possibilidades, novas cores à música. É um elemento mais, um elemento que é um músico extraordinário. Tudo se fará para que o conceito do disco se consiga colocar nesta formação também, em quarteto. Estou muito contente por colocar o Perico e o Matt a tocar juntos. Acho que eles se vão divertir muito e nós também.

Este ano apresentaste o teu último trabalho com um concerto na Culturgest, com um trio em que Matt Penman era convidado especial.

Bem, foi uma alegria gigante em vários sentidos. A Culturgest foi o primeiro sítio ao qual vim a Lisboa ver um concerto, teria para aí 18 anos. E passados 10 anos, estar lá a tocar no grande auditório, e com o Matt Pennam como convidado e com o meu companheiro Joel Silva, foi uma grande alegria. E que me deu um retorno musical que não é facilmente igualável e que eu espero repetir nos próximos anos.

Como surgiu a música na tua vida, tinhas antecedentes na família.

O meu pai toca um bocado de guitarra e foi ele que me comprou o teclado. E a partir daí o teclado fez sempre parte de mim. E o piano, depois mais tarde. Tinha quatro anos quando comecei a tocar.

E o jazz aparece quando na tua vida.

O jazz aparece mais tarde, aos 14/15 anos. Funk, música de fusão e o jazz, começa a aparecer tudo mesclado. E vou descobrindo que há uma música que tem a ver com improvisação. Que é o jazz. Improvisação essa que eu já faço quanto estou a tocar. Invento melodias. E sendo o jazz uma música que faz isso como essência, tentei perceber o que se passava. Gostei muito e descobri alguns discos, Joshua Redman, Coltrane, coisas que me iam emprestando também. Pat Metheny, Jim Hall. Foram os primeiros discos, os primeiros discos de jazz, jazz. Antes ouvia outras coisas, rock, pop.

Tanto quanto sei o Zé Eduardo foi fundamental para ti.

O Zé Eduardo foi a primeira pessoa, estando eu em Olhão e ele um músico de jazz que morava em Faro e dava aulas, foi a primeira pessoa que me deu as primeiras aulas de jazz mais a sério. Só tivemos tempo para duas aulas. Depois eu vim para Lisboa morar e ele deu-me o contacto do Rodrigo Gonçalves.

E que outras pessoas marcaram o teu percurso.

A minha professora de piano clássico do Conservatório em Faro, o Rodrigo Gonçalves. Essas pessoas vão orientando o teu percurso em termos musicais. Os discos sempre foram os meus maiores professores, são o país do jazz.

Quais são as tuas maiores influências além dos Beatles e dos Pink Floyd?

(risos) Em relação ao jazz, já ouvi e conheço muita coisa. Há uns que gosto mais, mas não posso dizer que me sinta influenciado por alguém em particular. Porque a música que faço tem muito a ver com experiências de vida, reflexão, cinema. Doutros sítios e coisas que te vão alimentando a alma de modo a poderes fazer música. Em relação aos Pink Floyd, Radiohead, Clã, Ornatos Violeta, Chico Buarque, João Gilberto, Jeff Buckley. Ouço muita coisa e tudo isso contribui para a minha música.

Neste momento o que andas a ouvir?

Neste momento comprei o CD do Ben Allison, contrabaixista. Comprei outro CD de Henry Arlan, ao vivo em Paris, que é muito bom. Tenho ouvido o novo CD dos Radiohead que também anda aí. E vou ouvindo outras coisas, o Jorge Palma (risos).

O que procuras na música, o mais concretamente na tua música.

Coração.

Coração? De resto no teu último trabalho há uma quantidade de frases. E há lá uma que fala precisamente do coração. Fala da alma, fala de coração.

Ah ok. Sobretudo o que quero é que a música seja uma força viva, viva no sentido de que não quero estar preocupado se é tecnicamente difícil ou tecnicamente fácil. Quero estar preocupado se isso está a servir a música, independentemente de ser difícil ou fácil, e normalmente é as duas coisas, quero que tenha um significado maior. Que tenha a ver com o coração, com a comunicação de mim para outros, de mim para a vida. E isso é importante para mim.

O que serve o quê, a técnica serve..

É sempre a técnica que serve a música.

Ou a arte, neste caso.

A arte, sim.

Qual o teu conceito de improvisação. Como filósofo, pensa-la?

Penso bastante. A improvisação é um espaço de liberdade, o que quer dizer que não tens que estar preso a nenhuma linguagem, nem a nenhuma história, inclusive à história do jazz, à linguagem do jazz. O jazz sempre foi uma música de rotura e sempre quis fazer disso uma pedra basilar da sua fundação. Nesse sentido é possível, até dentro do jazz, romper com a linguagem jazz, com aquilo que é mais canónico. É uma das coisas que mais gosto no jazz e é um dos conceitos de improvisação que mais me agrada. Improvisar também é – como alguém me disse um dia– compor em fast up. Isso quer dizer que quando estamos a compor, há mais coisas de ti que aparecem. O conseguires fazer da improvisação uma composição instantânea, uma composição no imediato. Isso é um bocadinho difícil. Fazer com que a improvisação seja um bocadinho tua. Sem grande fórmulas ou então a fórmula que tu já és. Aquilo que conseguiste adquirir em ti, é natural que assim seja. Uma espécie de natureza musical que está em ti, posta facilmente quando estás a tocar. Não que seja muito pensado, ou que seja pensado para ser difícil ou fácil. Pensada para ser natural. Natural e que tenha a ver comigo. Sou eu.

Eu também sou artista, e neste momento desde há cerca de meio ano desenvolvo um trabalho que se sente precisamente na improvisação dos desenhos que faço. Ao improvisar os desenhos nunca saem iguais, mesmo que queira fazer aquele modelo. O jazz têm limites para improvisares ou quando improvisas não estás obrigado a cumprir limites, a seguir paredes. Podes improvisar para onde quiseres?

É uma pergunta difícil.

Eu penso assim para o desenho.

Há uma questão, uma premissa, que é saber se estás a tocar sozinho ou com uma banda. Se estás a tocar com uma banda e com composições originais, elas estão estruturadas, têm uma estrutura. São temas. Podes fazer várias coisas, mas para romper com esta estrutura, tens que comunicar muito bem com a banda. tem que ser tudo muito bem comunicado musicalmente. Isso é muito interessante. Tu conseguires, dentro de uma estrutura, de repente olhar para a banda e construir uma banda que perceba que, se calhar, queres sair fora da forma e ficar só num momento sem forma, sem estrutura.

Pode ser trabalhado, em casa, em ensaios, mas, sobretudo, é mais fácil ser feito com uma comunicação musical, quando se está a tocar com uma banda capaz dissso. Esse é um limite do jazz quando estás a tocar em grupo. Quando estás a tocar sozinho podes ir para onde tu quiseres. Há sempre limites, tocas num piano, não tocas fora dele. Usas o piano, usas as suas possibilidades.

Mas dentro da estrutura também gosto de estar fechado numa estrutura e fazer qualquer coisa como parecer que estou a romper isso. Isso é o mais interessante do jazz, na minha opinião. Tocar um standard, que é uma estrutura fixa, uma estrutura que foi repetida n vezes, mas que tocá-la pode ser tão diferente em cada pessoa e isso é uma coisa que dá muito que pensar. Tu tens uma tela ou uma folha de papel, tens que fazer algo de novo...

Eu tenho os limites da folha e tenho que procurar um caminho ali dentro.

Exacto. E lá dentro pode ser tão maior do que aquela folha, e isso é interessante. De qualquer modo tem que estar contido à folha, senão não cabe.

Tocar um standard tem a exigência, por isso é um standard. Quando vais fazer a interpretação dum standard, sabes que há inevitavelmente a comparação ao standard.

É isso, por aí. Já foi tantas vezes repetido, que tem que ser dito com uma força diferente.

A filosofia tem sido determinante para o teu trabalho?

A filosofia enquanto acto de reflexão é determinante para qualquer pessoa na vida. Na arte é igualmente importante, tens que reflectir sobre aquilo que fazes. Sobre aquilo que queres fazer, sobre aquilo que és. Se aquilo que fazes faz sentido, se o sentido vem de ti ou te é dado por outra pessoa qualquer. E isso até se torna um pouco falso. Encontrar sentido, fazer sentido. E reflectir sobre aquilo que aconteceu e sobre aquilo que queres que aconteça. Sobre aquilo que tu és. É parte de qualquer humano que se queria dizer como tal. Enquanto ser pensante. A filosofia é muito importante. A própria filosofia no ponto de vista de literatura e aquilo que eu li e filósofos que eu conheci, também me inspiram.

Tens editado de dois em dois anos...

Exacto.

E editaste um álbum em Fevereiro. No entanto, já pensas noutro projecto ou vamos ter de esperar mais dois anos, inevitavelmente?

Estava a fazer uma música antes de vir para aqui. Provavelmente dois anos e sai um novo disco meu. Acho que os discos merecem algum tempo, pelo menos um ano, normalmente merecem. Mas tenho outros projectos, o projecto com a Maria João, que vai sair no final deste ano.

O projecto Ogre.

O projecto Ogre. O projecto com a cantora Elisa Rodrigues no qual estou muito empenhado. E outros projectos que ainda não têm edição pensada, mas dos quais eu vou fazendo parte. O meu grupo e o que vai acontecer, ainda não penso nisso, talvez daqui a alguns meses, largos, comece a pensar.

Nos projectos em que estás envolvido és o líder ou o frontman?  

Nesses que acabámos de falar.

Eu vi-te tocar naqueles duetos do CCB e depois vi-te tocar num Jazz às Quintas, com o Joel Silva, se não estou em erro. Foi uma quinta-feira em que deram um concerto que fica para a memória.

Ainda bem. Foi um momento ocasional, era aquela série de duetos que existe no CCB durante o Inverno, entre um músico português e um músico estrangeiro. Foi um concerto montado para fazer esse conceito e que me deu grande gozo. Gostava até de ter gravado, mas...

Não pensas em manter esse dueto.

Para um próximo disco não, mas talvez mais tarde. O próximo disco ainda não sei muito bem qual será a formação, mas começará no trio.

Mas na Festa do Avante será quarteto. E esse é um quarteto teu, fixo?

Sim, esse é um quarteto com que eu espero vir a tocar mais vezes. De qualquer modo, estes próximos anos serão mais dedicados ao trio. Eu, enquanto músico de jazz gosto de tocar em várias formações. Eu próprio fazer várias abordagens. Isso alimenta-me, desafia-me e faz-me crescer.

E editar um álbum com um trio, esta formação, esse pode ser o próximo álbum a lançar?

Pode ser.

Os teus três trabalhos até agora editados, não apresentam nunca uma formação base. Existe sempre um ou outro  elemento comum – o Joel, o Bruno Pedroso, um elemento comum, mas aparecem sempre vários nomes. Existe alguma razão especial para que assim seja?

Sim. Ainda que tenha uma base, como neste último disco era o Joel e o Ole, e depois toco regularmente com o João Custódio, músico português, e com o Bruno Pedroso. Eu quis que fizessem parte deste disco porque eles são parte da minha música. Daquilo que é construído ao longo destes ano, em que eu passo a pensar ou a tentar construir esse disco. E gosto que eles façam parte disso. Para além de trazerem no próprio disco, às vezes uma cor diferente. E isso é sempre interessante do ponto de vista de quem está a ouvir. Passa por aí, passa por isso tudo.

Da Alma, Assim Falava Jazzatustra e You Taste Like a Song. Fala-me sobre destes três discos, em que diferem, evoluções e se há espaço para mais.

Os dois primeiros são em quarteto, formação que sempre gostei e este último em trio. Sobretudo os três duma coisa que é aquilo que me agrada mais, sobretudo vivem por serem temas meus. Não por serem meus, mas torna os discos em obras mais pessoais. Se calhar antes não conseguia fazer dum standard uma coisa tão pessoal. Acho que agora já consigo. Não fazia muitos standards. Tinha muitas coisas minhas para dizer e os meus temas são isso. Gosto disso nos três discos, e gosto muito dos músicos que lá tocam, em cada um dos discos. E muitas vezes ouço, sobretudo por causa deles. O primeiro disco tem o Zé Pedro, o João Lobo, o João Rijo. Gosto de ouvir e reouvir. Na verdade, nem os ouço muito. Ouço mais quando eles estão quase a sair. Tenho que ouvir os takes e depois tenho que descansar um bocado disso. Gosto muito do segundo, o Perico a partir a loiça, é muito gratificante ouvi-lo nesse disco. E este último é o que me dá mais espaço, também me exige mais, mas estou contente.

Gosto muito dos teus três trabalhos, talvez mais este último. Talvez este último me diga mais qualquer coisa. Há ali muitas influências rockeiras. Neste último há um maior tratamento na textura sonora. O som é mais clean. Há um cuidado maior, deste um destaque maior à textura.

A qualidade da gravação também é muito superior, gravámos o primeiro disco num auditório. Sem as condições para gravar um disco. Actualmente com a qualidade de som que os discos têm... Não o fizemos nas condições ideais. O último foi gravado num estúdio, com condições xpto, e isso torna logo o som diferente. Em relação à própria música, eu espero ter evoluído e espero feito com que a música tenha ganho alguns pontos de clareza. Mais pelas performances. A minha própria performance.

Porquê o nome You Taste Like a Song.

Porque eu gosto muito de canções. Há uma expressão na música clássica, que é o cantabile. Que quer dizer que o pianista, neste caso um pianista ou outro instrumentista, tem que tocar de modo a que pareça que está a ser cantado. E normalmente melodias que são pensadas para ser cantadas, o canto exige respiração. O saxofone também exige respiração, mas os instrumentistas têm mais vícios a dar muitas notas.

A sensação que me dá neste último álbum é que tu tocas as composições, todos os temas de modos diferentes, com o teu cunho. E dás a provar com o título, para mim que sou o cliente final ou para o público geral a provar, o jazz de várias maneiras e várias formas. Um sai mais ao estilo do rock e outro ao estilo do jazz?

Eu podia responder mas a frase é tão bonita e não fui eu que a inventei. É quase como um verso e não merece que a gente a desfaça ou a descodifique. Acho que é mais interessante assim.

Até agora todos os teus discos levaram o selo da Clean Feed. Como aconteceu, como nasceu esta relação.

À maneira antiga, com uma maquete que eu enviei à Clean Feed e que o Pedro Costa decidiu então gravar comigo e temos tido uma relação bestial desde então. Com o primeiro disco, com o segundo, com este agora. Estamos ambos contentes e acho que vamos continuar.

Foste convidado para tocar no 10º aniversário da Clean Feed. Que representou este momento para ti?

É incrível que uma editora portuguesa, de jazz, esteja neste momento tão cotada e interessante. Estamos a falar dum país onde o jazz não tem uma expressão muito significativa, mas tem uma editora de jazz que é considerada uma das melhores do mundo. E tem músicos de jazz, que para mim, são dos melhores do mundo. E, nesse sentido, é uma felicidade que tenham durado estes 10 anos. E fiquei muito feliz de ver as mensagens de cada músico espalhadas pelas paredes. Venham mais.

Crês ser um reconhecimento de todo um trabalho, foi uma aposta ganha?

Eu espero que sim, foi sobretudo uma relação que deu bons frutos para ambos, acho que eles estão contentes por me terem no seu catálogo, um músico português, que tem felizmente tido das melhores críticas lá fora e eu fico muito contente por ter uma editora interessada na minha música.

Somos um país pequeno com um mercado e um público bastante limitado. Temos uma óptima publicação bimestral como é a Jazz.pt, temos várias editoras com destaque para a Clean Feed, que é considerada pela especialidade uma das melhores do mundo. Óptimos festivais e excelentes músico. Que balanço fazes da cena do jazz no nosso país? Como prevês o futuro? Somos um case study ou o jazz está na moda?

O país é pequenino como disseste. E tem, felizmente, músicos que não são nada pequeninos. Levam o país além fronteiras e dentro do país, aumentam. Em relação à cena jazz isso acontece. Era bom que o país tivesse mais força para exportar os seus artistas Isso é um problema do país, não da arte. É um problema da imagem do país, um problema político. Em relação ao futuro do jazz há cada vez mais escolas, o que é bom, mas é necessário haver mais sítios para tocar. Há muitas pessoas por aí, que serão grande músicos e não terão grandes oportunidades para tocar. Há cada vez mais gente formada. O Hot Clube teve um incêndio e felizmente vai reabrir, e espero que abram a pouco e pouco vários clubes de jazz pelo país. O Engenheiro Bernardo Moreira disse numa entrevista uma coisa que me pareceu muito acertada, que é que às vezes se gasta muito dinheiro em festivais de jazz. Se houvesse alguém a fazer um clube de jazz e a apoiar esse clube de jazz, as pessoas da vila ou da cidade, fosse possível ir ver um concerto semanal, criando um culto em torno do jazz e não fazendo tudo em dois dias e gastar rios de dinheiro nisso e não haver mais nada durante o ano. Isto parece-me uma excelente ideia, para além dos músicos tocarem pelo país. Mesmo ganhando menos, mas tocando mais vezes. Isso é o que gostamos de fazer, de tocar. Isto é uma boa ideia, mas duvido que aconteça.

António Pinho Vargas, Mário Laginha, Bernardo Sassetti, João Paulo Esteves da Silva, Rodrigo Pinheiro. Tu. Como te sentes em relação aos outros, sentes-te herdeiro, ao mesmo nível.

Sinto-me herdeiro, obviamente. Ouvi-os, foram pessoas que eu ouvi. E agora sinto-me como um amigo que aprendeu e que está a disposto a fazer a sua própria natureza musical crescer. Eles são incríveis, e são incríveis porque são muito singulares, aprenderam a cultivar isso nas suas carreiras. Eu espero fazer o mesmo, em relação ao peso que têm na história do jazz em portugal. A história demora a fazer-se e eu espero ter tempo para fazer parte disso. Para poder fazer parte dela, vivendo nela.

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* Originalmente publicado a 1 de Setembro de 2011, na Le Cool Lisboa * 303

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