Le Vitória 8

Portobelo-Arquipélago de San Blas.

Dois veleiros - Fenicia e Odisseia. Uma semana a navegar pelo mar das Caraíbas. Dezassete pessoas. Mochileiros e tripulação. Austrália, Canadá, Holanda, Colômbia, Uruguai, Equador e Portugal. Já o Sol se pôs e despedimo-nos de Portobelo, rumo a um dos maiores arquipélagos e a uma das viagens de barco mais paradisíacas que este nosso cantinho chamado mundo tem. Vamos todos em silêncio, de olhos fechados e em pele de galinha, desfrutando da magia que paira no ar. Passamos ao longo de toda a Cordilheira de Dárien e da pequena Ilha de Drake, onde foi enterrado um dos piratas mais temidos em toda a história dos Piratas das Caraíbas.

Com emoção navegamos sobre as estrelas, sobre a luz de Júpiter e seguimos uma rota rica em histórias, lendas e aventuras. Sento-me ao lado de um equatoriano que manejava o veleiro. Vamos lado a lado, partilhando apenas o som da quilha a bater nas ondas do mar, a lua cheia, o céu estrelado e levamos o tempo todo sorrindo, sem dizer uma única palavra. Não conseguimos tirar os olhos de cima um do outro. Um homem lindo, descendente de indígenas, pele escura, de longos cabelos negros, uns olhos escuros que espelham o legado Inca que lhe corre no sangue. Amor à primeira vista, no Caribe. Adormeço na proa do barco, com o coração cheio de adrenalina, com a incógnita de quão mágicos serão os próximos dias.

São 6h da manhã e acordo com o nascer do sol. O capitão sorri para mim e o seu olhar diz-me "Olha à tua volta". E quem disse que o paraíso ainda não desceu à terra? San Blas, também conhecido por Arquipélago das Mulatas, pertencem aos índios da comarca Kuna Yala. 369 ilhas, onde apenas 80 estão habitadas. Há ilhas para todos os gostos. Uma palmeira, duas palmeiras, três, quatro, com mais ou menos sombra, mais ou menos cocos, mais ou menos areia branca. Atracamos em Cayos Holandeses, numa ilha deserta, que seria só nossa nos próximos 3 dias.

As horas são divididas entre muito mergulho e muita partilha. O sol põe-se e extasiados observamos a força das cores fogo a deitarem-se no horizonte e a lua a espreitar-nos para nos dar as boas vindas. Hora de jantar. Chegam os índios Kuna no seu "cayuco" de madeira, com lagostas, caranguejos e afins, acabadinhos de pescar. Tripulação ao fogão! De estômago bem cheio, segue-se o trabalho de equipa. Tendas, muito rum e uma boa fogueira. Banhos de meia noite, à luz da lua cheia. Beijos de água salgada e abraços de areia. O que levavas para uma ilha deserta? Muito amor e uma cabana. E assim foi nos dias que se seguiram.

Ilha Tigre. Aqui ficamos por mais dois dias. Uma das poucas ilhas habitadas pelos índios Kuna. Ao contrário de outras, esta ilha não é nada turística, porque infelizmente também os índios já foram contagiados pela febre do turismo. Descalços caminhamos pela ilha onde as ruas são de areia como se fosse uma praia gigante. Cabanas feitas de madeira e folhas de palmeira. Os índios são baixinhos, considerados a comunidade de estatura mais baixa a seguir aos pigmeus. As mulheres sao exóticas, de pele bem escura, e cabelo negro curto. As suas vestes são incrivelmente coloridas e exibem ao longo dos braços e das pernas pulseiras de missangas com diferentes motivos. Têm uma hierarquia bem estruturada e regras bem estritas. Vivem da sua própria agricultura, da venda de algum artesanato, e muitas vezes trocam cocos por outros artigos que não podem produzir com os barcos de carga. Uma partida de futebol está marcada entre nós e os Kuna, que foram seleccionados para jogar no Campeonato Mundial de Futebol Indígena, na semana que se segue no Canadá.

Os dias passam e está na hora de seguir rumo para a Colômbia, agora dois dias em mar aberto. E foi aqui que mais uma vez a Mãe Natureza nos mostra a sua força e nos faz sentir o quanto pequenos somos. São 3h da manhã e a meio de uma brutal tempestade ficamos sem bateria. Sem motor e sem combustível. Ao ficarmos sem bateria a Fenicia por estar sem motor estava a ser puxada por uma corda pela Odisseia e com a força com que parámos quase que nos choca. Vimos todos a vida a andar para trás. O capitão manda-nos todos para dentro e diz que nos agarrássemos onde pudéssemos. As escotilhas estavam fechadas mas mesmo assim ouvíamos a água a inundar o barco na parte de cima. Tudo caía e abanava por todos os lados. Os ruídos eram ensurdecedores e parecia que nunca mais acabavam. Consigo levantar-me e olho pela janela. Vejo a Fenicia, iluminada por relâmpagos, o mar revoltado, a tempestade a querer engolir-nos naquele mar imenso, parecia um filme de náufragos que acaba da pior maneira. Ouvimos o capitão e os outros tripulantes a gritarem: " La Fenicia!! El Vertigo!! Nos vamos a morir!!!" E a rirem-se ao mesmo tempo!! Estes marinheiros... Finalmente adormeço e a manhã seguinte permanece silenciosa entre todos. Ninguém sabia como quebrar aquele momento, até que o capitão solta uma gargalhada acompanhada de um "cagaram-se todos ontem, não??" A Fenicia teve que ser solta, por umas horas enquanto carregávamos a bateria, e em que voltaríamos a cruzar-nos com eles para lhes dar de comer. Assim que nos cruzamos os meus olhos procuram os do meu índio, querendo só que aqueles dias de tempestade passassem para nos juntarmos de novo. Como num conto de histórias.

O dia seguinte segue-se com mais uma tempestade eléctrica, voltámos ao caminho, ventos sul, com o veleiro a navegar a 45 graus, agarrados à proa e a levarmos com a rebentação das ondas em cima! Que adrenalina!! As sensações intensificam-se num limiar entre a vida e o medo! Tudo é partilhado. A comida que começa a faltar, a água e os poucos cigarros que restam. Passamos quatro horas assim, até que: "Terra à vista!!! Bienvenidos à Colômbia!! Cartagena de las Indias!!", gritamos todos. Os corações acalmam e os veleiros cruzam-se.Trocam-se abraços e beijos quentes entre todos!! Grandes edificios à vista, majestosos, mas que conferem alguma beleza a este porto. Por detrás desta cidade moderna esconde-se um centro histórico cheio de vida.

Cartagena. A cidade querida da América Latina. Uma das cidades mais bonitas que já vi em toda a minha vida. As paredes são de cores quentes e coloridas, uma arquitectura colonial perfeitamente restaurada e há música em todo o lado. Caminhamos todos abraçados, com sorrisos pregados à cara que mal conseguimos tirar. Todos dançam felizes boleros mexicanos e salsas caribenhas. As pessoas abrem as portas das suas casas e fazem das suas cozinhas restaurantes. Cortam cabelos na rua a horas que não lembra a ninguém. Calor, boa energia, música, comida. Como uma típica cidade-porto, os habitantes são descendentes de escravos negros. As senhoras que vendem fruta, vestidas nos seus trajes vermelhos com estampados coloridos, carregam-nas em enormes cestas na cabeça e assim caminham tranquilamente pelas ruas. Linda Cartagena, hei-de voltar de novo para te abraçar. É com uma lágrima ao canto do olho que nos despedimos todos, com esperança de nos encontrarmos de novo, para nos rirmos desta linda aventura.

Bogotá. Uma capital como outra qualquer, a 2500 metros de altitude. Tem a sua beleza, mas não é cidade para mim. Prédios em cima de prédios, sinto-me fechada. No entanto, é uma cidade limpa, de certa forma organizada, super moderna e os colombianos são super boa gente, sempre sorrindo, bastante atenciosos, com bastante orgulho na sua cultura.

Cali, a capital da salsa. Fiquei hospedada no Bairro de San Antonio, um bairro cuidado, moderno, com boa gente e uma vida impressionante.  "La 5a" é a avenida mais conhecida para esta atracção. Onde se dança salsa, rumba, merengue, bachata, todos os ritmos latinos conhecidos e desconhecidos de Segunda a Segunda.

Sem dúvida nesta viagem, vivi momentos intensos de coração e de aventura, que mais uma vez me fazem pensar o quanto é importante, pormos de lado tantas preocupações supérfluas. Saber viver, desfrutar, sem ter que olhar para trás e pensar que o faríamos diferente, aceitar as transformações, aceitar-nos como somos, aceitar os medos que temos e ouvir o coração, caminhar na rua e assobiar, de tão estupidamente contentes que estamos. Depois disto, é com um sorriso na cara que digo que sou feliz pelos momentos que vivi e por não saber aqueles que me esperam, mas sabendo que não há pressas para nada, conectar-me e aceitá-lo porque tudo nesta vida tem uma razão para ser.

Depois de uma aventura em mar aberto, conhecer a bela Colômbia. Está na hora de conhecer esse belo país primo daquele que agora é o meu país, e reencontrar-me com aquele que agora aquece o meu coração. Mochila às costas, pé na estrada, preparada para cruzar mais uma fronteira, mas desta vez por terra!

Equador aqui vou eu!

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* Originalmente publicada a 29 de Setembro de 2011, na Le Cool Lisboa * 307 

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