Le Vitória 11


Viver em Ollantaytambo, a 2750 metros acima do nível do mar, num povoado com 1500 habitantes no centro, cerca de 3500 pela montanha. Depois de tantos meses a viajar dentro e fora do Peru, chegou a hora de assentar. Arrendei um quarto num pátio castiço, com vista para as ruínas, numa rua construída pelos próprios Incas.

Ollantaytambo é a cidade viva dos Incas. O único lugar onde os espanhóis foram derrotados e por essa mesma razão ainda hoje se mantém tal como há 500 anos. A cerca de 3 horas de caminho pelo meio da montanha com vistas incríveis, passando pelos 100 terraços agrícolas Incas, estão as ruínas de Pumamarca, construídas a 3200 metros de altitude, num ponto estratégico com um ângulo de 360º, para que os Incas pudessem avistar a chegada do inimigo. Aqui, foram encarcerados os espanhóis quando tentaram invadir este lindo povo.


Há turistas que vão e vêm todos os dias. A maior parte só mesmo de passagem, pois Ollantaytambo é o ponto de partida do Inca Trail entre outras Tours e é a estação principal de comboios que vão diretos a Aguas Calientes. A poucas horas daqui, está a porta de entrada para a selva: Quillabamba e Paucartambo.

Pensei que viver aqui seria mais fácil. Devido à crescente ascensão turística nos últimos anos, qualquer ollantino, assim que avista um turista, avista dinheiro. Gente tradicionalmente vestida junto com os seus filhos, que apenas falam quechua, arranham mais palavras em inglês, que em espanhol, para lhes tirarem fotos a troco de uma pequena gorjeta. E os pequenos soles que arrecadam num dia, faz com que abandonem o trabalho que têm nos seus campos, e não darem a educação adequada às suas gerações posteriores, gastando esse dinheiro em álcool e comidapré-fabricada.

Tanto se dizem conectados com a Pachamama, quando, ao mesmo tempo, a caminho da minha casa às tantas da noite, vejo-os, homens e mulheres, bêbados, a bater nos seus filhos e netos, enquanto estes os ajudam até casa, a urinarem no sistema de irrigação, onde amanhã as suas crianças vão beber
água e lavar a sua própria roupa. E no meio disto tudo, a Câmara Municipal não tem uma palavra a dizer.

Uma ONG bastante conceituada ajuda à festa, deseducando a gente local. Para variar é mais uma das que se aproveita da imagem das comunidades desfavorecidas e dos trajes exóticos, para meter dinheiro ao bolso. E pela má reputação que tem, os outros turistas que querem vir para cá viver são metidos no mesmo saco. E a maior parte dos que cá vivem, porque estão aborrecidos e não há nada que fazer neste lugar tão pequeno, preocupam-se mais em fazer festas privadas, com muito álcool e drogas para a cabeça, que fazer algo interessante para os próprios e para a comunidade.

Resumindo, o povo local, apesar de manter as suas tradições quechuas, são um povo bastante conservador e desrespeitador com a sua própria cultura, assim que nunca pensei ser tão difícil para mim viver num lugar com mentalidades tão pequenas. Principalmente sendo mulher. As mulheres ollantinas por todos estes factores e por motivos de repressão pela colonização, já nascem com o sangue entranhado num sentimento de inferioridade e de inveja. Não me posso vestir como quero, não posso falar com a gente local que quero, porque começo a sentir o burburinho mal viro costas. No entanto, por mais que isso me incomode, sei que a culpa não é do povo mas sim do sistema. Poucas semanas depois de cá chegar, já me queria ir embora. Estava aborrecida e revoltada.

Mas um dia tudo mudou. No dia em que me apaixonei duas vezes.

Convidaram-me para dar aulas de Educação Expressiva em Urubamba, a maior cidade do Vale Sagrado a apenas 30 minutos de aqui. E chegou-me apenas esse dia para compreender que apenas me faltava um incentivo para perceber que na realidade é aqui que quero ficar nos próximos tempos. Pais, professores e as próprias crianças queriam mais, assim que me convidaram para ficar nos próximos 3 meses a dar aulas como que numa colónia de férias, porque o ano letivo acabou e as aulas recomeçam em março. Nessa mesma semana apaixonei-me e já sabem como é. No entanto, desta vez, pela primeira vez não é por um mochileiro, que está de partida dentro de poucos dias e tudo tem de ser intenso, efémero com promessas pelo meio.

O que não é mau, mas que depois de um ano de tantas viagens e paixões, o meu coração começa a
cansar-se das paixões fugazes e a pedir um descanso de tanta injeção de adrenalina passageira. Não existe a relação perfeita e nos dias de hoje amar incondicionalmente e entregarmo-nos ao amor está fora de moda. Cada vez mais procuramos a perfeição quando ela nem sequer existe, nem nunca há de estar em nós, porque é mais fácil procurar e largar que, simplesmente, aceitar os erros e os defeitos da pessoa que queremos e de nós próprios, e dizer: “Amanhã será outro dia e melhor.”

Assim que com o passar de poucos dias, dei-me conta que de certa forma aqui é um bom lugar para ficar. Está tudo para começar e mudar. Quero ver mais do que estas montanhas têm para me mostrar e o que este lugar tão mágico pelo qual todos se apaixonam tem para me dar. Quero começar com pequenas coisas, com a comunidade local, a fazer-lhes entender que não sou mais uma turista a querer tirar proveito da imagem deles. Antes pelo contrário. Continuo com o projecto das vítimas das cheias em Urubamba, que depois de tantos meses de esforço, finalmente o Ministério da Agricultura está a construir a barreira junto ao rio, assim que agora apenas há que angariar fundos para reconstruir casas para 12 famílias e restaurar o sistema de saneamento.

Tirando isso, tenho tempo para dar as minhas aulas pela manhã, trabalhar no bar de um amigo meu pela tarde, escrever, fotografar, ler, caminhar pela montanha, colocar os pequenos projetos que tenho no papel para este povo, voltar a reescrever os meus documentários, procurar uma casa onde possa ter a minha horta, o meu cão e o meu gato, depois de um ano a viver em pensões de todos os géneros e feitios, estou cansada de mudar daqui para ali. Tenho tempo finalmente para me entregar a alguém que se quer entregar também, que tem o mesmo tempo que eu, sem pressas, porque amanhã não tem que apanhar um avião de volta, e que, por mais irónico que pareça, depois de todo este ano de paixões assolapadas, esta sem dúvida é a que tem sido a mais intensa, a mais verdadeira, a mais desejada, a mais compreensiva, a mais partilhada.

Pela primeira vez como já não sentia há tanto tempo, sinto que estou com alguém, que parece que sempre esteve ao meu lado.

Agora tenho tempo. Para compreender o muito que se passou neste último ano, o digerir e usar e melhorar o que julgo necessário para o ano que aí espreita. E muito mais tempo terei com este novo ano que está para chegar. Que todos vocês também tenham absorvido todas as vossas boas e menos boas experiências nos últimos 365 dias. Que tenham também o tempo que precisem, neste ano tão especial que vem a caminho. Que elevemos o nosso espírito a uma consciência mais solidária, porque é disso que estamos a precisar e não de pessoas que olhem mais para o seu umbigo, como se tivessem o rei na barriga, com medo que alguém lhes roube o pouco que têm. Que elevemos o nosso espírito a uma consciência mais comunitária, porque estamos todos no mesmo barco, onde quer que estejamos. Que elevemos o nosso espírito a uma consciência mais ecológica, porque há que respeitar e agradecer a tudo o que esta maravilhosa força do acaso dada pelo nome de Natureza tem para nos dar, que se conectem com ela, que para o próximo ano cada um dê mais do que tem, seja a uma pedra, a uma paisagem, a um sorriso, a um momento, a um olhar, a um chorar. Que se consciencializem, que vivam, que sejam felizes, que sejam espontâneos, que dêem valor a quem está ao vosso lado antes de partir, que sorriam mais, que tenham a mente aberta para dar e receber, para ensinar e aprender, que seja Carnaval e Natal todos os dias, que desfrutem das coisas simples da vida, que mudem o vosso porto seguro, que sejam curiosos, que visualizem o que projetam, porque tudo é possível, mas não demasiado, porque hoje em dia, para além da educação, já não funcionam projetos a longo prazo como no tempo dos nossos pais, que ponham energia e paixão em tudo o que fazem, que sejam seres de Luz, porque hoje em dia há tantas oportunidades e tantas portas que as nossas gerações anteriores lutaram para agora estarem abertas para nós, porque hoje em dia tudo parece tão longe, mas na realidade está tudo tão perto, até mesmo o fim do mundo.

Que confiem no que está dentro de vocês. E que, se puderem, dêem uma pequena volta ao mundo. Nós somos o sítio que nos faz falta.

Deixo-vos com duas músicas dos maiores poetas contemporâneos deste lado do Oceano. Porque não podiam descrever melhor este maravilhoso continente que é a América Latina e que tanto tem para ensinar, e porque dizem aquilo que muitas vezes nos falta dizer.

Feliz Ano 2012 a todos.

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Enlaces
http://www.youtube.com/watch?v=bKpyrC47Jcg
www.youtube.com/watch?v=DkFJE8ZdeG8

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