Le Entrevista a Filipe Raposo por Francisca Carvalho


No insert do teu disco “First Falls” encontrei uma frase que me chamou à atenção: “algumas descobertas tornam-se parte de nós como cicatrizes na pele”. Como é que, no teu processo criativo, um fragmento, uma impressão, uma página de um livro ou uma imagem de um filme se transmutam numa música?

Quando componho ou toco, há uma tentativa de exteriorizar através da música, imagens poéticas que vou construindo, recolhidas da literatura, colhidas de uma imagem ou até de simples partilhas diárias... são uma espécie de quadros sonoros, que vou desenhando na estrutura formal das minhas composições e improvisações, criando uma espécie de "história" compacta, que se materializa na voz do meu piano.

Neste sentido algumas destas descobertas são tão importantes que se tornam "cicatrizes", no sentido que permanecem na nossa pele, evocando a experiência do impacto da descoberta. Na realidade diariamente somos confrontados com muita informação (por vezes até demasiada informação), no entanto só algumas descobertas se projetam no futuro.



“Junto toda a minha vida numa única mala. Uma mão leva o passado e outra agarra o futuro”. Fala-nos um pouco do que levas na bagagem e do que queres transportar para os teus projetos futuros.


Na minha bagagem levo a Humanidade compactada sob várias formas:

Há um espólio infindável de conhecimento Humano, que passa pela Ciência, pela Arte, pelo pensamento Filosófico...  é o nosso ADN cultural que tento reunir na minha música, por vezes aproximo-me de um poeta, noutras vezes de um compositor ou filósofo, reunindo e reinterpretando todo este conhecimento. Obviamente que este oceano do conhecimento é demasiado vasto, para abraçar tudo o que gostaríamos, mas pelo menos, "aportamos o nosso barco", no porto ou portos onde gostaríamos de estar.

É esta a missão do artista enquanto criador, conferir a objetos inanimados o "sopro da vida". Projetar no futuro, todo o legado cultural, que nos foi transmitido.

Para além da tua atividade como músico e compositor, costumas colaborar com a Cinemateca. Como é dar a voz a um filme mudo?

Acompanhar ao piano os clássicos do cinema primitivo, na Cinemateca Portuguesa foi e continua a ser um privilégio enorme. Conhecer estes realizadores, que influênciaram toda a história do cinema (Murnau, Griffith, Sjostrom, Vertov…), acabou por me influenciar também, enquanto ‘ilustrador musical’ destas mesmas imagens, que estão presentes na minha música. As minhas composições também são narrativas no sentido em que contam as minhas experiências e histórias, acabam por ser um acompanhamento das minhas imagens poéticas.

No teu concerto na Ler Devagar apresentaste um tema inspirado nas Cidades Invisíveis de Italo Calvino. Na geografia das cidades audíveis, a que é que soaria Lisboa?

Lisboa é uma mulher de voz grave, que ecoa no porto nas manhãs de nevoeiro, as suas roupas antigas, evocam um passado anacrónico, um império perdido em cada madrugada, mas novamente conquistado nas noites de delírio e boémia. Cortesã para os que a querem descobrir pela primeira vez, e fiel amante dos locais. Perfumada de sons concretos, vozes, dialectos, línguas, cores... Mulher mãe e mulher viúva, de tantos quanto a amaram, e a abandonaram, partiram...

Ouço África, festas de escravos que permanecem nos mesmos locais, os mesmos rituais iniciáticos, ouço a cultura erudita e ao mesmo tempo a tradição. Consigo escutar o murmúrio da multidão, o troar dos tambores... suaves ondas de Tejo, nos quais volto a adormecer!

Quando um músico quer estar em silêncio que local da cidade busca?

Este silêncio encontro-o na minha casa, no entanto continua a ser um silêncio urbano... paradoxalmente é na Natureza que encontro o verdadeiro silêncio que até pode estar povoado de pequenos sons, mas é verdadeiramente terapêutico.

Sem comentários:

Enviar um comentário